TEXTO 3
Professor/a: profissão de risco?
O magistério foi considerado durante muito tempo como uma profissão muito valorizada socialmente, de prestígio e reconhecimento pelo seu potencial humanizador e seu compromisso com a formação para a cidadania. Em geral, esta valorização não era acompanhada de condições de trabalho muito favoráveis. O salário dos professores e professoras era módico e os estímulos para o desenvolvimento profissional escassos. No entanto, isto não impedia que o magistério fosse visto e vivido como uma profissão que valia a pena por sua importância ia intelectual, ética e social.
Esta não é a situarão que vemos hoje. Junto às condições de trabalho precárias que a grande maioria dos/as professores/as vive, é possível detectar um crescente mal-estar entre os profissionais da educação. Insegurança, stress, angustia parecem cada vez mais acompanhar o dia a dia dos docentes. Sua autoridade intelectual e preparação profissional é freqüentemente questionada. As múltiplas manifestações de indisciplina e violência no cotidiano escolar se intensificam. As pressões sociais se fazem cada vez mais fortes e as escolas públicas e privadas, não conseguem responder adequadamente às novas demandas. O impacto das tecnologias da informação e da comunicação sobre os processos de ensino aprendizagem obrigam a buscar novas estratégias pedagógicas. Os sujeitos da educação, crianças e adolescentes, apresentam configurações identitárias e subjetividades fluidas que escapam à compreensão dos educadores/as. Diante deste quadro muitos/as evadem da profissão e procuram caminhos mais tranqüilos e seguros ele exercício profissional.
Ser professor/a hoje vem se transformando em uma atividade de risco, que desafia nossa resistência, saúde e equilíbrio emocional, capacidade de enfrentar, a cada dia, conflitos e construir experiências pedagógicas significativas.
5.1-Entre saberes e culturas: o que ensinar?
Esta pergunta é na atualidade extremamente desafiadora para nós, professores e professoras. A identidade docente tem estado fortemente ancorada, especialmente a partir do segundo segmento do ensino fundamental, no domínio de um conhecimento específico, do qual o/a professor/a é considerado/a especialista. A posse deste chamado "conteúdo” não é colocado em questão. Este saber, oriundo do campo científico de referência, dá ao docente segurança e convicção de que possui um patrimônio, que lhe é próprio, que lhe corresponde socializar. Este conhecimento foi adquirido ao longo de vários anos de formação universitária, e pertence aos "iniciados” em cada área específica do conhecimento considerado científico. Por outro lado, existem bons livros didáticos que "pedagogizam” e transpõem estes “conteúdos” aos diferentes níveis de ensino. Confiantes no nosso saber, formação e nos materiais de apoio selecionados, podemos desenvolver com tranquilidade e competência nossa atividade docente diária.
Esta era a visão dominante, mas a reflexão pedagógica em geral e, mais especificamente, a teoria curricular, nos últimos anos vem questionando fortemente esta concepção do conhecimento escolar. Este passa a ser concebido como uma construção específica do contexto educacional, em que o cruzamento entre diferentes saberes, cotidianos e/ou sociais e científicos, referenciados a universos culturais plurais, se dá no dia a dia das escolas em processos de diálogo e confronto, permeados por relações de poder. O conhecimento escolar não é um “dado” inquestionável e “neutro”, a partir do qual nós, professores/as configuramos nosso ensino. Trata-se de uma construção permeada por relações sociais e culturais, processos complexos de transposição/recontextualização didática e dinâmicas que têm de ser ressignificadas continuamente.
O que ensinar? Como favorecer aprendizagens significativas? Estas perguntas, mais ou menos óbvias e tranquilas em outros tempos passam, hoje, a ser questões desestabilizadoras e instigantes, que admitem respostas múltiplas, segundo as concepções epistemológicas e educativas que informem nossas práticas cotidianas.
5.2- Nossos alunos e alunas: identidades plurais e fluidas que nos escapam a cada momento?
Outra questão que informa a prática docente diz respeito à caracterização de nossos alunos e alunas. Durante muito tempo nos pautamos em nosso dia a dia por uma visão do que se convencionou chamar de "aluno médio”, certamente uma abstração, mas que constituía uma referência para a docência. De onde veio esta construção? Acredito que se possa afirmar que está baseada numa simplificação de textos de psicologia do desenvolvimento e de psicologia da educação, em que são apresentadas as principais características de diferentes etapas da vida, no nosso caso das fases da infância, da pré-adolescência e da adolescência. Muitas vezes trata-se de elementos que favorecem uma visão homogeneizadora, que tendem a descrever de modo uniforme os/as "alunos/as”. Tendemos a assumir esta visão uniforme destes personagens e a adequar nosso ensino a esta visão.
Basta entrar em uma sala de aula do ensino fundamental com um olhar sensível às diferenças para que se evidencie a inadequação desta perspectiva. As crianças e adolescentes "explodem” este modo de encará-los. Apresentam formas de expressar-se, comportar-se, situar-se diante de distintas situações que questionam nossas formas habituais, socialmente construídas, de lidar com elas. Diferenças de gênero, físico-sensoriais, étnicas, religiosas, de contextos sociais de referência, de orientação sexual, entre outras, se visibilizam e expressam nos cenários escolares.
Nós educadores e educadoras nos manifestamos muitas vezes desconcertados com nossos alunos e alunas, diante desta explosão das diferenças. Tendemos, com frequência, a encará-la negativamente, “já não se fazem alunos como antigamente"..., afirmamos explícita ou implicitamente. Os/as alunos/as estão exigindo de nós, educadores/as, novas formas de reconhecimento de suas alteridades, de atuar, negociar, dialogar, propor e criar. Estamos desafiados a superar uma visão padronizadora, assim como um olhar impregnado por um juízo, em geral, negativo de suas manifestações. Trata-se de abrir espaços que nos permitam compreender estas novas configurações identitárias, plurais e fluidas, presentes nas nossas escolas e na nossa sociedade.
5.3-Entre o "quadro-negro/verde/branco" e as tecnologias da informação e comunicação: que dinâmica construir na sala de aula?
Outro aspecto desestabilizador da prática docente diz respeito às estratégias didáticas privilegiadas na sala de aula. O ensino frontal tem sido a perspectiva dominante nas nossas escolas. Basta entrar em um estabelecimento de ensino que o reconhecemos pela organização espacial das salas de aula. O chamado "quadro-negro, verde ou branco” em uma das paredes, as carteiras enfileiradas diante dele, indicando que todos devem olhar para aquele personagem, nós, professores/as, que, em alguns instantes entraremos para "dar a sua aula”. Certamente esta descrição é caricatural. Nos primeiros anos do ensino fundamental já está sendo superada. No entanto, na segunda etapa do ensino fundamental e no ensino médio, afirmo, sem duvidar, ainda impera na grande maioria das escolas. Certamente de modo matizado em muitas situações, com maior frequência de exposições dialogadas, alguns trabalhos em grupo, utilização de filmes, apresentações em powerpoint e utilização de outras mídias que "modernizam” mas não rompem com o chamado ensino frontal.
É importante ressaltar que, em algumas escolas, já se está trabalhando em uma perspectiva diferente, que se pode chamar de “sala de aula ampliada” (Koff, 2008). Nela os diferentes espaços escolares - corredores, pátio, biblioteca, laboratório de informática, etc. – e mesmo espaços fora da escola - ruas, museus, fábricas, empresas, jardins, parques, shoppings, etc. – são concebidos como "salas de aula”, na medida em que podem propiciar processos de aprendizagem e ensino, tanto de professores/as, quanto de alunos/as.
A familiaridade das crianças e adolescentes com as TICs é cada vez maior. Os alunos e alunas manifestam intimidade com este mundo, “navegam” com autonomia e, muitas vezes, nos ensinam, pois nós, professores/as - pelo menos os que possuímos mais anos de magistério -, em geral, nos metemos no mundo das TICs mais lentamente. Esta é uma realidade que vem se impondo cada vez mais. Como integrar de modo consistente as TICs nos processos de ensino aprendizagem? Como utilizá-las na perspectiva de favorecer processos de construção de conhecimento, análise e reflexão críticas? Como operar com as múltiplas possibilidades que as TICs oferecem a partir de uma visão reflexiva e crítica de sua utilização, tanto no meio escolar, corno na sociedade em geral?
5.4- Que significa cidadania em sociedades marcadas pelo individualismo e a cultura do consumo? Qual o papel da escola nesta perspectiva?
Entre os objetivos das escolas, um dos considerados básicos, constitutivos da própria configuração da instituição escolar, é a formação para a cidadania. Mas, o que quer dizer esta expressão hoje? Ainda tem sentido afirmá-la? Cidadania, em geral, é uma categoria relacionada com a consciência de pertença a um estado-nação. Serviu historicamente, me atreveria a afirmar, para negar e/ou silenciar as diferenças: “Somos todos brasileiros” é uma expressão muitas vezes utilizada para superar conflitos e não reconhecer desigualdades e discriminações.
Vivemos em tempos de globalização que, para vários analistas, é um fenômeno pluridimensional que fragiliza os chamados estados-nação. Por outro lado, nas sociedades complexas, marcadas por políticas neoliberais e pela centralidade do consumo e do individualismo, a cidadania é muitas vezes orientada para a formação de consumidores.
Neste contexto, problematizar a questão da cidadania constitui um desafio importante para nós, educadores e educadoras. De que cidadania falamos? Que cidadania queremos ajudar a construir? Como ressignificar este conceito que está relacionado com a dimensão pública, sociopolítica e coletiva da vida? Como favorecer unia cidadania diferenciada, que procura articular igualdade e diferença' Muitas são hoje as experiências de voluntariado, os projetos promovidos por organizações não-governamentais e outros atores da sociedade civil que apontam nesta direção e, certamente, nós educadores/as também somos chamados a participar desta construção de redes de solidariedade e compromisso social.
Profissão de risco... Certamente ser professor/a, hoje, supõe assumir um processo de desnaturalização da profissão docente, do "ofício de professor/a”, e ressignificar saberes, práticas, atitudes e compromissos cotidianos orientados para a promoção de uma educação de qualidade social para todos/as. Mas, não é isto que permite humanizarmo-nos e humanizar, nos aprofundar nos dilemas do nosso tempo, dilatar horizontes, desafiar, criar? Não são estas as "marcas” da profissão docente?
Referência Bibliográfica:
CANDAU, Vera Maria. Professor/a: profissão de risco? In: CANDAU, V. M. (org.). Didática questões contemporâneas. Rio de Janeiro: Forma e ação, 2009.
Nenhum comentário:
Postar um comentário